O advento do coronavírus provocou significativas alterações com importância para o ambiente jurídico. A pandemia mundial do coronavírus é um fato jurídico extraordinário decorrente de um fato natural, capaz de gerar efeitos modificativos, extintivos e constitutivos em determinadas relações jurídicas. Por consequência, as relações jurídicas que têm tais fatos como substrato precisam se adaptar à nova realidade.

A adaptação vai desde a interpretação dos contratos até a resolução, passando pela revisão das cláusulas avençadas. De início, veja a lição de Maria Helena Diniz (2019, p. 89):

“(…) A atividade interpretativa do contrato é uma operação difícil, que requer saber e prudência, devendo o intérprete guiar-se pelo sentimento jurídico, que o impedirá de cair em interpretações alheias à vida jurídica. Dever-se-á buscar, na tarefa de interpretação contratual, os princípios da boa-fé objetiva (CC, art. 422) e o da conservação ou do aproveitamento do contrato, procurando presumir que os contratantes agiram com probidade e fazendo com que, havendo dúvida, prevaleça a diretriz interpretativa conducente à produção de algum efeito ou à sua exequibilidade. (…)”

Enquanto fato jurídico extraordinário, o coronavírus se enquadra como caso fortuito e força maior, nos termos do artigo 393, parágrafo único, do Código Civil. O caso fortuito é aquele evento imprevisível e inevitável, tornando-se um fato necessário diante das circunstâncias. Para a força maior, a imprevisibilidade é menos relevante, enquanto prevalecem a inevitabilidade e a condição de fato necessário. Ora, é certo que o coronavírus enquadra-se em ambos.

Nesse contexto, busca-se saber o momento da conclusão do contrato, o lugar da celebração e o tempo de sua execução. De um lado, os negócios jurídicos celebrados antes do coronavírus podem ser objeto de revisão ou resolução. De outro lado, o atual contexto de incerteza, instabilidade econômica e risco à vida ensejam que negócios jurídicos celebrados após o coronavírus possam estar eivados de defeitos, ressaltando-se o estado de perigo e a lesão.

É evidente que a simples disseminação da doença não basta para tornar todo e qualquer negócio jurídico defeituoso, nem passível de revisão ou resolução. Exige-se a presença dos requisitos para modificar ou extinguir as avenças. Nesses termos, o presente artigo pretender apresentar de maneira breve as hipóteses mais claras, na ordem que aparecem no Código Civil vigente.

Na seara pessoal, o adoecimento de um ente querido ou a necessidade de isolamento imediato podem forçar qualquer pessoa a contratar em estado de perigo, conforme preceitua o artigo 156 do Código Civil:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Na seara negocial, o risco de desfalecimento patrimonial pode forçar empresários, comerciantes e investidores a contratar sob lesão, nos termos do artigo 157 do Código Civil:

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

Esse seria o caso, por exemplo, de locatário de imóvel comercial, que tendo investido no negócio durante os últimos anos, enfrenta a renovação do contrato de locação no presente momento com índice de reajuste superior ao valor de mercado. Ao avaliar a perda do fundo de comércio e demais investimentos já realizados, comparando-os com o prejuízo de um novo valor de locação em prestação manifestamente desproporcional ao mercado diante da instabilidade econômico-financeira atual; nessa situação, o locatário encontra-se sob premente necessidade de evitar a perda patrimonial e, ao mesmo passo, garantir a permanência no imóvel.

O negócio não precisa ser anulado, mas pode tão somente ser readequado, como autoriza o artigo 157, § 2º, do Código Civil. De todo modo, seja pela lesão ou pelo estado de perigo, a invalidade do negócio jurídico deve ser arguida por meio da anulabilidade, com fundamento no artigo 171, II, do Código Civil. Se, posteriormente, os contratantes decidirem pela manutenção do negócio, eles podem confirma-lo, por força do artigo 172 do Código Civil.

Porém, se a intenção for anular o negócio jurídico eivado de vício, o devedor não pode cumprir sequer em parte a sua obrigação, desde que ciente do vício, pois o cumprimento reflete em confirmação tácita e extingue, inclusive, todas as ações e exceções que tivesse contra o credor. Nesses casos, a medida adequada é renegociar diretamente com o contratante ou buscar a via judicial adequada. A consequência da anulação será o retorno ao status quo ante ou, não sendo possível, a devida indenização pelo equivalente.

Para os negócios jurídicos celebrados antes da disseminação mundial do coronavírus, as medidas variam conforme a natureza das obrigações contraídas, mas o resultado atinge finalidades semelhantes. Vejamos uma a uma. Para as obrigações de dar coisa certa, aplicam-se os artigos 234, 235, 238 e 240 do Código Civil:

Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu.

Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda.

Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art. 239.

O caso fortuito e a força maior são fatos necessários que afastam a culpa do devedor. A incidência dos citados artigos 234, 235, 238 e 240 do Código Civil é imediata. Por exemplo, para a obrigação de entrega ou restituição de coisa certa, com prazo de validade, que venceu antes da tradição, diante das restrições de movimentação impostas pelo isolamento horizontal, temos a perda sem culpa do devedor. Note-se que se a atividade do devedor foi fechada temporariamente pelo poder público e a obrigação alcançou seu termo naquele período, a obrigação poderá apenas postergada, se ainda exequível, mesmo que deteriorada a coisa; ou fica resolvida, se perdida a coisa.

Contudo, há um detalhe se a obrigação for de entregar coisa incerta. A circunstância para afastamento da obrigação somente encontra guarida se na ocasião dos fatos já tivesse ocorrido a escolha, a quem quer que a escolha caiba, por força do artigo 246 do Código Civil:

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito.

A situação é possível porque a coisa incerta torna-se certa após a escolha, regendo-se a obrigação nos termos dos artigos 233 a 242 do Código Civil. Assim, a título de exemplo, para a obrigação de entrega de um alimento perecível, as normas transcritas terão incidência se o lote tiver sido escolhido e individualizado. Caso contrário, continua o devedor obrigado a dar a coisa pelo gênero, pela quantidade e demais características inscritas no título da obrigação.

O mesmo itinerário é percorrido com as obrigações de fazer e de não fazer. O caso fortuito e a força maior são outra vez fatos necessários que afastam a culpa do devedor. As normas estão previstas nos artigos 248 e 250 do Código Civil:

Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Aqui é bem fácil apresentar duas possibilidades exemplificativas. Primeiro, se alguém contraiu a obrigação de circular pelas ruas com uma determinada propaganda e deveria cumprir a obrigação durante o período de isolamento horizontal; ou, segundo, se um condômino de uma multipropriedade permaneceu no imóvel em período que deveria não utiliza-lo, mas o fez porque foi obrigado pelo isolamento de diagnóstico testado positivo. Nos dois casos a obrigação será resolvida ou extinta.

Ainda que fossem alternativas as obrigações, utiliza-se o mesmo entendimento, agora com amparo nos artigos 253 e 256 do Código Civil:

Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexequível, subsistirá o débito quanto à outra.

Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação.

Em todos os casos, a transitoriedade do evento e o interesse das partes serão ponderados. A decisão da melhor saída depende do balanceamento dos fatos com os interesses envolvidos e as cláusulas originalmente inscritas no contrato. Maria Helena Diniz (2019, p. 184) ensina que:

“(…) Se a impossibilidade for temporária, como se verifica com frequência nos contratos de execução continuada, não se terá resolução, mas apenas suspensão do contrato, exceto se essa impossibilidade persistir por largo espaço de tempo, a ponto de o credor se desinteressar da obrigação. E se for parcial essa impossibilidade, a resolução do ajuste não se imporá, pois o credor poderá ter interesse em que o contrato se execute assim mesmo (…)”

Para além dos efeitos no adimplemento das obrigações, o coronavírus impacta o equilíbrio de determinadas relações contratuais. A solução é difícil, pois supera a simples subsunção das normas. Antes de abordar o tema, cumpre conhecer a doutrina de Maria Helena Diniz (2019, p. 48):

“(…) hodiernamente, para a lei, a doutrina e os tribunais, ante o dirigismo contratual, o princípio pacta sunt servanda não é absoluto (p. ex., arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil e 49 da Lei n. 8.078/90) por estar limitado, como já dissemos, pelo princípio do equilíbrio contratual ou da equivalência contratual; a teoria da imprevisão, que deixa de ser norma consuetudinária, passando a ser norma legal, cuja expressão mais frequente é a cláusula rebus sic stantibus (…)”

Os contratos celebrados antes do coronavírus certamente não previam semanas de isolamento social, comércio fechado e serviços suspensos. A economia sentiu forte impacto e a renda de inúmeras pessoas foi alterada. Se o objeto do contrato foi atingido por tais efeitos e causou desequilíbrio contratual, aplica-se em alguns casos o artigo 317 do Código Civil:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Por exemplo, aplica-se ao caso de um comerciante que se comprometeu a adquirir determinada quantidade de um produto que agora se encontra com preço muito acima do esperado diante da escassez e o próprio comerciante está com o seu estabelecimento fechado. Aplica-se também ao caso de um intermediário que se comprometeu a vender determinado produto ao último componente da cadeira de fornecimento, e todavia não adquire mais o produto do antecessor pelo mesmo preço diante da alta demanda, tornando o negócio economicamente inviável.

Em certos casos, a própria mora é afastada, como reclama o artigo 396 do Código Civil, se os efeitos do coronavírus forem o fato determinante para o inadimplemento. No entanto, o artigo 396 somente será útil aos casos em que o termo final é alcançado durante os efeitos da doença, posto que a mora preexistente continua a obrigar o devedor, por força do artigo 399 do Código Civil.

Nessa seara, também pode haver espaço para a exceção do contrato não cumprido. Apesar de a regra geral insculpir que, antes de cumprida a sua obrigação, não se pode exigir a do outro, é certo que o artigo 477 Código Civil traz outra hipótese:

Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

Por fim, os impactos econômicos do coronavírus são tão severos que inúmeras relações comerciais foram afetadas. A menor circulação de consumidores, o uso restrito dos espaços comerciais, a queda da renda, o desemprego. O rol de consequências é grande e continua incalculável. O impacto pode afetar a prestação intermediária de uma aquisição imobiliária, o preço da locação de um imóvel ou a locação de uma frota de carros. Se houver prova de que o coronavírus gera onerosidade excessiva a um dos contratantes, ele poderá pedir a incidência do artigo 478 do Código Civil, merecendo leitura também o artigo 479:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Ao devedor, cabe o direito de pedir a resolução do contrato, mas nada obsta ao credor propor a revisão da avença, restabelecendo prestações equitativas às originalmente assumidas, em homenagem ao princípio da conservação do negócio jurídico e à cláusula rebus sic stantibus. Sobre o tema, Maria Helena Diniz (2019, p. 185):

“(…) A parte lesada no contrato por esses acontecimentos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, que alteram profundamente a economia contratual, desequilibrando as prestações recíprocas, poderá, para evitar enriquecimento sem causa ou abuso de direito por desvio de finalidade econômico-social, sob a falsa aparência de legalidade, desligar-se de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações recíprocas, por estar na iminência de se tornar inadimplente tendo em vista a dificuldade de cumprir o seu dever, ingressando em juízo no curso da produção dos efeitos do contrato, pois se este já foi executado não haverá intervenção judicial. (…)”

Mesmo nos contratos aleatórios, é possível a revisão, desde que o evento não tenha relação com a álea, conforme entendimento firmado no Enunciado n. 440 do Conselho Nacional de Justiça. Noutro caso, prevalece o quanto contratado. Nesse ambiente de prevalência do pacta sunt servanda, o caput do artigo 393 autoriza que o devedor se responsabilize expressamente pelos prejuízos resultantes do caso fortuito ou força maior. A previsão precisa estar insculpida como cláusula no contrato assinado pelas partes, para que tenha validade. Nessas situações, é inevitável o afastamento das normas ora estudadas, se fundadas em caso fortuito ou força maior, excetuadas circunstâncias de culpa por fato diverso. A mais, normas esparsas sobre o tema também serão encontradas nas regras de quase todos contratos em espécie.

Conclui-se que o advento do coronavírus trouxe muita instabilidade para relações jurídicas em vigor e para aquelas contraídas durante esse período de turbulência. Importa estar atento às prestações contraídas e aos fatos que sustentam a relação jurídica. Prever os próximos eventos e suas consequências exige muito esforço. As readequações dos negócios jurídicos podem precisar da intervenção do judiciário, mas nada disso será necessário se os contratantes fizerem valer os princípios de probidade e boa-fé contidos no artigo 422 do Código Civil. A depender do caso, é preferível renegociar diretamente e expor as dificuldades. Em tais casos, a assistência do advogado se dá pela elaboração de termos adequados para a renegociação, que pode converter-se em novação contratual ou em aditamento contratual. Afinal, as relações jurídicas espelham fatos, e o coronavírus é um novo fato jurídico em jogo.

REFERÊNCIA

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 35. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 928 p.